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Numa zona rural do estado do Oregon, nos Estados Unidos da América, os profissionais de saúde que regressavam de um posto de vacinação, retidos numa tempestade de neve, perante a impossibilidade objetiva de saírem do local, decidiram, e bem, vacinar todos os condutores que se encontravam por perto.
Um facto que é perfeitamente compreensível, cá e lá fora, e não se pode confundir com os maus exemplos que abundaram em Portugal, nas últimas semanas. Todos os dias aparecem, como cogumelos, mais e mais casos de administração abusiva, indigna e moralmente reprovável de vacinas.
Desde a Câmara de Portimão até à pastelaria contígua ao INEM, no Porto, passando por uma fundação em Reguengos, pelo hospital de Riba d’ Ave, em Famalicão ou pela Segurança Social, de Setúbal. Uma verdadeira via sacra de vacinação indevida, deixando em segundo plano, grupos prioritários na vacinação como os profissionais de saúde, doentes de risco, idosos, polícias e bombeiros, entre outros. Os casos são ainda mais graves se atentarmos às desculpas esfarrapadas e às explicações absurdas dos prevaricadores.
Eles são autarcas que descobriram a vocação para o voluntariado e outros que se valem da acumulação de cargos em IPSS, a relação de vizinhança com os estabelecimentos de restauração ao lado, para não descartar vacinas e até dos cônjuges e dos filhos, pasme-se, por haver vacinas a mais. Por este andar nem vai ser necessária a terceira fase, tal é o número de sobras que aparecem.
E o ridículo ganha contornos de escândalo quando sabemos que cada frasquinho, que contém seis doses de vacina, pode ser conservado num frigorífico comum, durante 5 dias, e depois de perfurado, pode ser ministrado, até seis horas. Tempo mais do que suficiente para identificar quem precise, em vez de beneficiar quem se aproveite.
Há quem lhe chame a isto chico-espertismo ou batota de covid-oportunistas, mas o que está em causa são mesmo ilícitos em concreto. Crimes de abuso de confiança, burla e recebimento indevido de vantagem, para aqueles que são funcionários públicos. Vacinar pessoas sem prioridade é crime.
Portanto, parece que há plano que, no final do dia, não tem planeamento.
Confrontado com estes factos, o coordenador do plano de vacinação afirmou, de forma quase inimaginável que “o sistema foi montado para vacinar pessoas, não para perseguir aqueles que fazem batota”. Francisco Ramos, desconhece afinal, mas o Estado de direito existe tanto para prevenir como para sancionar determinados comportamentos ilícitos.
Não bastam auditorias, como alega Francisco Ramos. É preciso que o Ministério Público, ao abrigo do princípio da legalidade, abra inquéritos para apurar a responsabilidade criminal destes atos, como defende o bastonário da Ordem dos Advogados. E deve atuar já, em todos os casos suspeitos, e sem esperar pela pressão da opinião pública ou vir a reboque do tempo mediático. Se não tivemos sanções exemplares para quem está a prevaricar, corremos o risco de nos lamentarmos com a máxima “o crime compensa”.
Francisco Ramos, que já se havia tido o mau gosto de justificar estes casos, com uma piada de natureza ideológica, parece que não compreende que não lhe pedimos que inflija castigos, mas que, face às alegadas infrações, defina regras para que não repitam, nem os abusos, nem os falsos argumentos.
Acabou como só podia acabar. Com a demissão do próprio, mas embrulhada num enigma, uma vez que os fundamentos para resignar ao lugar foram por conta de irregularidades na vacinação noutra entidade em que se mantêm funções. Confusos? Pois, também eu. O que é certo é que está encontrado um bode expiatória para ilibar o Governo e livra-se o próprio de prestar esclarecimentos que devia ao país, por já não ter de comparecer à audição parlamentar agendada para a próxima semana.
Somos dos países mais atrasados na imunidade. Cada dose de vacina deve ser um ato moralmente justo. Até há quem diga que mais depressa os fura-filas das vacinas atingirão a impunidade em grupo, porque este combate mostra mais a fragilidade das instituições e os vícios dos cidadãos que a nobreza de caráter das lideranças e a solidariedade humana. Não podemos, nem devemos pactuar com este regabofe das vacinas. Com a ajuda externa, casos como estes deviam fazer-nos cobrir de vergonha, por não sabermos cuidar de nós próprios.
Artigo publicado originalmente no Povo Livre