No editorial de 4 de novembro passado, denunciei o homicídio bárbaro de um cidadão ucraniano, sob a guarda do Estado português, no aeroporto de Lisboa, que foi torturado e assassinado às mãos de inspetores Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), atentando contra o mais elementar princípio do Estado de direito, a inviolabilidade da vida humana.
E o que decidiu o responsável político da tutela? Primou pela omissão e optou pelo estado de negação. Os erros do ministro da Administração Interna são tantos e de tal gravidade, que nem se sabe bem por onde começar.
Logo em abril, Eduardo Cabrita referiu-se à “negligência grosseira e encobrimento gravíssimo” do SEF para qualificar o caso, mas ignorou o mais básico. Não dirigiu condolências à família, nem garantiu o imediato auxílio para que a família pudesse receber de volta o corpo de Ihor Homenyuk.
Eduardo Cabrita, que prometera retirar consequências desta ocorrência, deixou que a diretora do SEF permanecesse no cargo mais oito meses, mesmo depois da divulgação das evidências do relatório da Inspeção-Geral da Administração Interna.
Apesar da indignação do ministro, foi Cristina Gatões que se demitiu, porque aquele, nem neste momento teve coragem de ser consequente. E esta só tomou a decisão pela pressão mediática e para conter os danos políticos, porque todos sabemos que, em Portugal, raramente se retiram consequências de factos com esta dimensão trágica.
Entretanto, os alegados agressores aguardam o julgamento em prisão domiciliária, o que também não deixa evidenciar a ligeireza e a contradição das decisões judiciais. Os tribunais, que cominam com prisão efetiva os pilha-galinhas, são os mesmos que deixam, no conforto da prisão domiciliária, três inspetores indiciados no concurso de crimes hediondos.
Eduardo Cabrita podia ter fechado logo o assunto, se tivesse saído de cena pelo próprio pé, em vez de, no seu jeito vaidoso e pesporrente, persistir num chorrilho de “boutades”, como “Bem-vindos ao combate pela defesa dos direitos humanos”. O ministro, que se arroga campeão dos direitos humanos, não teve sequer a dignidade de desbloquear o pagamento prévio das despesas do funeral. Foi a família que juntou 2.200 euros para a trasladação do corpo para a Ucrânia. Afinal, parece que é o campeão dos direitos sonegados.
Num passa-culpas de responsabilidades, o ministro propôs a instalação de botões de pânico – outra decisão ridícula – no aeroporto de Lisboa, “que sempre que ativado, obriga ao seu registo em relatório, com indicação de hora e motivo que determinou a sua ativação e comunicação da mesma ao responsável”. Em pânico deve ficar o País com a falta de bom senso de um ministro, que acredita piamente que um botão vai garantir a segurança de alguém.
Mais de meio Governo veio em socorro de Cabrita, como o ministro dos Negócios Estrangeiros, um eterno mensageiro da propaganda tóxica, que nunca vira “um ministro reagir com esta clareza”. Mais de meio País registou o óbvio. Ninguém assumiu a responsabilidade política, para além da solidariedade orgânica de um governo cego, surdo e mudo para o sucedido.
Entretanto, o diretor nacional da Polícia de Segurança Pública (PSP), estranhamente ou talvez não, foi recebido em Belém, a um domingo, e no fim, fazendo de ministro, desautorizou o próprio. Um ex-operacional do Grupo de Operações Especiais (GOE) que, portanto, acertou em cheio, no coração do Ministério das polícias.
Num crime, com os contornos de um thriller e, ao mesmo tempo, de película de terror, sobram apenas o elogio para o médico-legista que detetou as condições criminosas da morte de Ihor Homenyuk e o mérito de uma denúncia anónima, que levou a Polícia Judiciária a abrir uma investigação.
Mas a imagem de Portugal, a credibilidade de um dos estados mais seguros do mundo, acolhedor e com tradição tolerante e humanista estão hoje manchadas por um caso que, infelizmente, acabará por trazer à tona mais episódios de abuso de poder, de tortura e de violência de agentes no exercício de funções.
A viúva e os dois filhos merecem mais do que um pedido de desculpas de um país que não se revê nem quer que se repitam estes episódios de violência gratuita, de carniceiros, em matilha, que envergonham o nome e a autoridade do Estado.
O SEF é hoje uma sigla amaldiçoada e o ministro da Administração Interna só não é demitido porque integra o "inner circle" do Primeiro-Ministro que, com a desfaçatez que o carateriza, até afirmou que Cabrita “fez o que lhe competia”.
Acontece que o ministro já não é ministro ou vai continuar ministro-fantasma, a prazo, até que o Governo encontre melhor saída, para alguém que já é mais problema do que parte da solução.
Um crime sem castigo, para o qual não há quaisquer desculpas.
Artigo publicado originalmente no Povo Livre