José Cancela Moura: A esmola

16 de julho de 2020
PSD

Há quem pense que todos os advogados auferem vencimentos principescos. Mas a realidade é muito diferente. A classe também sofreu o impacto do confinamento, da redução de atividade, da perda de clientes e da redução de rendimentos.

No dia 30 de junho, foi publicada a portaria que decreta o aumento de oito cêntimos, repito, oito cêntimos, da unidade de referência utilizada para o cálculo das remunerações dos advogados, que trabalham no âmbito do Sistema de Acesso ao Direito e aos Tribunais. Portanto, oito cêntimos é o que o Governo considera justo para atualizar a tabela dos honorários dos advogados oficiosos, pagos pelo Estado, para defender os cidadãos sem recursos, ainda por cima em contexto de crise.

Ainda por cima este valor não era atualizado desde 2009. Mas se era para darem esta esmola, por aumento, mais valia estarem quietos. E, como lembrou o bastonário da Ordem dos Advogados, “as extraordinárias afirmações que constam do preâmbulo” do diploma, parecem indiciar que, com esta atualização, os advogados vão passar a viver melhor. Viver melhor, com mais oito cêntimos?

O Governo sublinha, na portaria, “a irrecusável natureza de direitos legalmente conformados” que “determina que o acesso ao direito constitui uma responsabilidade do Estado, que deve garantir uma adequada compensação aos profissionais que participem no respetivo sistema, garantia que, todavia, por se tratar de diretos prestacionalmente dependentes, não pode desvincular-se, em absoluto, das condições sociais concretas, designadamente económicas, do país”. Tão claro que não precisa de mais nenhum comentário.

Já sabíamos que a ministra da Justiça, que é magistrada, tem uma predileção pelas magistraturas. Só para que conste, recordo que os juízes registaram um aumento na remuneração base média mensal de 19,5%, entre 2011 e 2019 – o ganho médio mensal foi de 21,1%, ou seja, mais de mil euros. No ano passado, os aumentos dos juízes conselheiros, em termos absolutos, foram na ordem dos 600 a 700 euros.

Até na questão da carreira, em toda a administração pública, o Governo mostra um desprezo pelas demais classes forenses e profissionais. Por exemplo, um professor no topo da carreira conseguirá alcançar um valor máximo de vencimento equivalente ao que aufere um juiz estagiário. Uma total “falta de sentido de Estado”, como qualificou Rui Rio, há um ano. Para os advogados, a situação é delicada, porque nem todos integram grandes sociedades ou trabalham em grandes escritórios. Por isso, muitos dos 33 mil advogados que exercem em Portugal estarão a passar por dificuldades na atual crise.

Andará bem a Ordem dos Advogados se, como anunciou o bastonário, impugnar a referida portaria, porque de facto esta espécie de aumento constitui uma afronta ao trabalho dos advogados oficiosos.

Os advogados, e em particular aqueles que assumem os mandatos oficiosos, estão a ser distratados ou tratados como se fossem agentes forenses da segunda divisão do sistema judicial. Do Governo podíamos esperar de tudo, mas o que não contávamos era que, a ministra da Justiça, que também é uma agente da justiça, demonstrasse tamanho desrespeito por uma classe que será tão nobre quanto a dignidade de tratamento que o Governo lhe conferir.

E não ficava mal que o Governo, num ato de contrição, reconhecesse este erro clamoroso e procedesse à alteração da portaria, no sentido de atualizar os honorários destes advogados, de forma verdadeiramente justa e equilibrada.

Artigo publicado originalmente no Povo Livre