José Cancela Moura: A coutada

17 de junho de 2020
PSD

Os órgãos de soberania são os esteios da República, na tripla função de poderes – executivo, legislativo e judicial.

A diferença entre um regime democrático e um modelo autocrático ou ditatorial é que, no primeiro caso, todos se regem pela lei e respeitam a Constituição. Ao invés, nas ditaduras, quem governa faz da lei letra morta, ao serviço de um sistema de partido único e de dirigentes que se perpetuam no poder. São os donos e julgam as suas próprias decisões.

E em democracia, também não há leis à medida nem há, “a priori”, lugares destinados para este ou para aquele cidadão, seja um anónimo ou uma figura pública, alguém mais experiente ou um principiante, um ego maior ou um mais pequeno. O Primeiro-Ministro, decidiu desgraduar e despromover Mário Centeno – fosse por incómodo, por conveniência ou por necessidade – e preparou, como quis e à medida, a sua saída do Governo, mas não pode pensar que pode dispor do aparelho de Estado para reservar um lugar cativo para o anterior titular da pasta das Finanças.

O Banco de Portugal é uma instituição com quase dois séculos e é o banco central da República, não é, nem pode ser, uma extensão do Largo do Rato, uma qualquer coutada socialista ou um anexo de luxo para emprateleirar ex-ministros. Sobretudo quando se pretende premiar com uma nomeação dourada, alguém que quem foge da crise como o diabo da cruz, numa das horas mais críticas do País e quando se adivinham grandes sacrifícios coletivos.

A eleição do governador do BdP obedece a normas concretas, gerais e abstratas, e a instituição não está ali ao virar da esquina para servir a vontade ou os devaneios do Primeiro-Ministro, que parece querer usar os lugares de Estado, para um jogo de xadrez político. “O Governador é nomeado por resolução do Conselho de Ministros, sob proposta do Ministro das Finanças e após audição por parte da comissão competente da Assembleia da República” é o que prescrevem, nos Estatutos do BdP. Será que António Costa não percebe que o Parlamento tem a última palavra e que o seu parecer, apesar de não ser vinculativo, deve ser consequente nas suas ilações?

A Assembleia da República está a legislar sobre a eleição dos membros da direção das entidades administrativas independentes. Ora, não podemos constantemente dizer que a democracia está em crise e depois fazer tábua rasa das normas e procedimentos necessários para impor credibilidade ao regime.

Nenhum sistema político sobrevive à hipocrisia institucional de partidos políticos que dizem uma coisa e fazem o seu contrário. O BE, por exemplo, considera que o ex-ministro Centeno não tem condições para ser eleito Governador do BdP, mas, ao fim do dia, já está disposto a fechar os olhos à nomeação. É uma espécie de versão geringonça 2.0, em que faz um jeito ao Governo ali, para depois receber uma contrapartida política acolá.

O que mina o Estado de direito é esta hipocrisia política. Diz o povo que “quem semeia ventos, colhe tempestades”. Neste caso, quem promete cargos a “boys”, incómodos e soberbos, enveredando pela tática política, em mina o interesse nacional, arrisca-se a agravar o fosso entre cidadãos e democracia.

Já se especula que o Novo Banco vai precisar de mais injeções de capital.

Depois do Primeiro-Ministro ter perdido a confiança em Centeno, alguém acredita que este a possa voltar a recuperar, só porque foi premiado com o BdP? Uma relação de lealdade, quebrada que seja, fica definitivamente ferida de morte.

Artigo publicado originalmente no Povo Livre