José Cancela Moura: O senhor Abílio

11 de novembro de 2020
PSD

A situação sanitária é complexa, mas é inaceitável que o Governo, que teve meses para preparar a segunda vaga da pandemia e, mesmo assim, seja incapaz de tomar as medidas necessárias para travar o colapso para que caminha o Serviço Nacional de Saúde. A prestação de cuidados de saúde pode fazer a diferença entre a vida e a morte. No fim, são vidas que se salvam. Dezenas, centenas e até milhares. Mas cada vida é muito mais do que a mera estatística.
Portugal já ultrapassou as três mil mortes, e sabemos todos que os números oficiais estão longe da verdade. Por entre os números, anónimos e distantes, importa ter em conta que cada vida é única e irrepetível e portadora de um trajeto pessoal carregado de sonhos, lutas e desafios.
Quero deixar o testemunho do senhor Abílio Moreira Teixeira dos Santos, com quem me cruzava com frequência. Era um operário, de 74 anos, de origem e condição humilde, aposentado e de rendimentos parcos, pai de seis filhos e um doente de risco, com comorbilidade, como agora se diz, ou seja, com diversas patologias associadas, como diabetes, insuficiência cardíaca e respiratória.
Deu entrada nas Urgências, do Hospital de Gaia, em três momentos distintos, no último fim de semana de outubro, com um quadro clínico crítico e recorrente, com dificuldades respiratórias, febres altas e fortes suspeitas de ter contraído a doença.
Testou positivo, mas das três vezes, sempre lhe recusaram o internamento. Foi a filha que o foi buscar, após ter sido literalmente abandonado, numa cadeira de rodas, ao frio, nas Urgências do hospital.
Faleceu no dia 4 de novembro de 2020, de madrugada, sozinho, em casa e é apenas mais um dos 59 portugueses que morreram, nesse dia, e de quem mais ninguém se lembrará.
O senhor Abílio era um ex-combatente da guerra colonial e, como me disse a filha, com a voz embargada, nunca desertou da sua missão pela pátria, mas quando ele mais precisava, foi o País que o abandonou.
Podem faltar ventiladores, camas, equipamentos de proteção e até profissionais de saúde, mas quando faltar alma e coração, faltará absolutamente tudo.
Como não raras vezes, nos falta a nós humildade para aprender com os nossos erros, falta humanidade, para governar e para legislar, por muitos de nós não saberem e estarem muito longe de saber o que é a vida e o que custa a vida. A morte do senhor Abílio envergonha-nos a todos.
Para a Direção-Geral de Saúde será apenas mais um número a lamentar. A ministra da Saúde, que vai à televisão jurar que o Governo não é indiferente à realidade, está cada vez mais distante da vida real. O Primeiro-Ministro prometeu que não iriam faltar meios, mas eles escasseiam, ainda por cima com a bizarria de o Estado prescindir de hospitais modernos e apetrechados, apenas por mero preconceito ideológico. 
O senhor Abílio deixou-nos e, tal como o fiz no Parlamento, onde interpelei a ministra da Saúde, sobre estes factos, rogo, uma vez mais, que esta corrija procedimentos e evite a repetição de casos, como este, que nos deixam quase desesperançados. Muitos portugueses morrem por covid-19, mas outros tantos partem apenas pela ingratidão da pátria, que os abandonou às portas de um inimigo invisível.
Não há preço que pague o valor de uma vida.

*Em memória do senhor Abílio Moreira Teixeira dos Santos, vítima de covid-19. À sua família, em especial à esposa e aos filhos, reitero as minhas sinceras condolências.

Artigo publicado originalmente no Povo Livre