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No último dia do ano de 2014, António Costa visitava, a título pessoal, o preso número 44 do Estabelecimento Prisional de Évora, José Sócrates. O líder do PS manifestava solidariedade privada ao amigo, mas, do ponto de vista público, defendia “que uma coisa são os sentimentos em relação a alguém que já foi líder do partido e Primeiro-Ministro e outra coisa é a necessidade de o PS se concentrar na sua função, que é construir uma alternativa [para o país]”.
António Costa, discípulo de José Sócrates e colega do próprio nos governos liderados por António Guterres, conhece bem o “animal feroz”, pretendia desde logo livrar-se do ativo tóxico, natural de Vilar de Maçada. Não é por acaso que José Sócrates vem agora acusar o PS de “traição”, por o ter abandonado, na defesa de direitos que, segundo o próprio, lhe tem sido negada. “A política ama a traição, mas despreza o traidor”, José Sócrates dixit.
À frente do PS Sócrates tornar-se-ia no mestre da mentira, do embuste e das teorias da perseguição e da conspiração. E o primeiro governo de Sócrates bastou para confirmar um desastre político anunciado. A seguir a bancarrota esteve por um fio.
A tentativa de Costa de impor um cordão sanitário à volta do caso é uma velha tática apenas para contenção de danos e serve, essencialmente, para o PS se livrar da enxurrada do libelo acusatório que recai sobre o ex-Primeiro-Ministro que, alegadamente, terá andado a “mercadejar com o cargo”. Não é grave, é gravíssimo. Até os socialistas recusam a narrativa de “processo político” que Sócrates recuperou, e a debita “ad nauseam”, em tom de vítima, e com a intenção de manipular a opinião pública.
Os luxos da vida de Sócrates são públicos e notórios e não têm uma explicação razoável.
“Quem cabritos vende e cabras não tem, de algum lado lhe vem” é expressão que melhor carateriza a investigação ao antigo governante socialista. Por isso, vir alegar que este inquérito judicial tinha por objetivo impedir uma candidatura à Presidência da República é uma boutade cómica e uma manobra de diversão, de um arguido náufrago dos seus próprios argumentos.
Na passada sexta-feira, com a leitura de uma súmula de 6.728 páginas da decisão instrutória, escreveu-se uma das páginas mais negras da justiça portuguesa. Um juiz, que garantia não ser nem “a favor nem contra ninguém”, acabou por fazer ruir o trabalho de milhares de horas de uma investigação, escrutinada por dezenas de magistrados, em alguns casos até, com recurso à Relação, a apenas três crimes de branqueamento de capitais e outros três, por falsificação de documentos. Um feito tão inédito, quanto incompreensível! Um autêntico apagão ao Estado de direito.
Para o juiz de instrução, a acusação do Ministério Público é “delirante, uma fantasia, mera especulação e tem pouco rigor e consistência”. Para o comum dos cidadãos, a decisão do juiz é inconsequente e imprecisa. Porque hipervaloriza o depoimento de certos arguidos, sustenta-se em prova indireta e até negligencia a lei tributária, que impõe a obrigação de comunicar, ao fisco, os acréscimos patrimoniais não justificados.
Fica aquela ideia de uma pronúncia de mexilhão. Parece que, afinal, o desgraçado motorista, que levava e trazia as “fotocópias, fotocópias mais miúdas, documentos, aquilo, a coisa, o mesmo que da outra vez, os apontamentos”, é o principal criminoso, hélas, pronunciado por um crime de detenção de arma proibida.
Ao cabo de mais de três horas de leitura da decisão instrutória, o Campus da Justiça em Lisboa tornou-se no símbolo do pantanal da impunidade contra a corrupção. O país está farto de decisões judiciais pífias, que ferem a dignidade e que contribuem para o benefício do infrator.
Terá agora a palavra, o Tribunal da Relação de Lisboa que decidirá, em sede de recurso, se quer, ou não, fazer justiça. Se rescreve uma página de confiança no sistema judicial ou se capitula perante o terramoto de 9 de abril.
A memória e o escrutínio coletivo não prescrevem. Porque, o povo não esquece as palavras do padre António Vieira, no “Sermão do Bom Ladrão”: “Basta, senhor, que eu, porque roubo em uma barca, sou ladrão, e vós, porque roubais em uma armada, sois imperador? Assim é. O roubar pouco é culpa, o roubar muito é grandeza; o roubar com pouco poder faz os piratas, o roubar com muito, os Alexandres”.
Artigo publicado originalmente no Povo Livre