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No dia 28 de setembro, às 9h57 horas, o vice-Almirante Gouveia e Melo, oito meses depois de assumir funções, deu por concluída a sua missão como responsável da “task force” que coordenou a vacinação contra a covid-19. Na cerimónia, estavam presentes, além do Primeiro-Ministro, o ministro da Defesa e outros membros do Governo.
Nesse mesmo dia, às 18h00, o ministro da Defesa recebeu o chefe do Estado-Maior da Armada (CEMA), o Almirante António Mendes Calado, que se encontrava de férias, para o informar que iria propor a sua exoneração ao Presidente da República, que havia sido reconduzido nestas funções, no passado dia 1 de março, ou seja, há menos de seis meses.
No dia seguinte, os meios de comunicação dão como certa a exoneração e a substituição do CEMA pelo vice-Almirante que liderara o processo da vacinação, enquanto o Presidente da República referia a existência de “equívocos” e desmentia aquela demissão.
Uma peça de teatro surreal.
Ao final da tarde, quando a linha vermelha fora ultrapassada, o Presidente da República convocou de emergência o Primeiro-Ministro e o ministro da Defesa para uma audiência no Palácio de Belém. Enquanto a imprensa divulgava que fora o Primeiro-Ministro a tomar a iniciativa de falar com o Chefe de Estado, após o encontro, é o Presidente da República quem declara, no site da Presidência: “Ficaram esclarecidos os equívocos suscitados a propósito da Chefia do Estado-Maior da Armada”, após a reunião requerida por ele próprio, anunciando, afinal, a manutenção do CEMA.
Uma verdadeira trapalhada, em três atos.
Os equívocos podem ter sido sanados, mas a responsabilidade por este monumental desacerto e deslealdade institucional está ainda por apurar. Este foi o episódio mais grave entre o Presidente da República e o atual Governo, que só encontra comparação nos tempos agitados do PREC, da confusão, das decisões sumárias e do vale tudo.
Um semanário, no sábado seguinte, veio assegurar que o “Presidente da República estava a par de todo o processo” e que fora ele que conduzira a nomeação de Gouveia e Melo como chefe do Estado-Maior da Armada, atribuindo os equívocos à Casa Militar do Presidente da República, que terá “manipulado” o Presidente da República. A ser verdade, o chefe da Casa Militar não está à altura de funções e Marcelo Rebelo de Sousa tem de passar guia de marcha a quem assegura a sua ligação com as chefias militares.
Mas se o abuso de poderes ou “atropelamento de instituições” a que aludiu Marcelo Rebelo de Sousa e a subsequente fuga de informação partiu do ministro da Defesa – e recorde-se que o Presidente da República é o Comandante Supremo das Forças Armadas, a quem cabe nomear e exonerar, sob proposta do Governo, os Chefes de Estado-Maior dos três ramos das Forças Armadas – então será João Gomes Cravinho que não tem condições para continuar no cargo. Ou permanecerá como outros, como mais um zombie no Executivo, que integra formalmente o Executivo, mas sem autoridade para governar? Ou como um fazedor de equívocos que enlameiam o bom nome do vice-Almirante, responsável por um dos mais exigentes e melhor conduzidos processos de planeamentos que Portugal conheceu nas últimas décadas? E o Governo, queria ou não aniquilar ou anular a popularidade de Gouveia e Melo e, ao mesmo tempo, usurpar o capital e o estatuto que o vice-Almirante alcançou na pandemia?
Uma autêntica encenação, verdadeiramente dramática para as Forças Armadas.
Certo é que a autoridade do Estado, a magistratura de influência – às vezes, mais interferência! – do Presidente da República e a credibilidade das Forças Armadas não podem ficar à mercê de poderes mesquinhos ou de jogos de xadrez político entre órgãos de soberania. Já basta o estado a que chegaram as Forças Armadas, com a menorização dos militares, a decadência de equipamentos, a falta de segurança das infraestruturas, para agora, ficar sujeita a manobras de bastidores e saneamento de altas patentes, que põem a nu as debilidades de um ministro, que parece manifestamente inapto para o lugar.
João Gomes Cravinho pode até ser um exímio diplomata, mas na Defesa, pelos vistos, é um erro de casting. Nos 111 anos do 5 de outubro, triste espetáculo aquele a que assistimos, sob o manto diáfano da fantasia e dos equívocos entre atores políticos sem a dimensão de Estado, que os cargos lhes exigiam.
Artigo publicado originalmente no Povo Livre