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Recordo um passado, já relativamente distante (segunda metade dos anos setenta do século passado, depois do 25 de Abril de 1974), em que a sociedade portuguesa e, nesta, os mais diretamente envolvidos seja com as questões da economia, seja com a política, discutiam com igual empenho a Lei do Orçamento do Estado e a Lei das Grandes Opções do Plano.
A partir de então, e vão muito anos, praticamente quatro décadas, vejo prestar-se cada vez mais atenção ao Orçamento (debates infindáveis na Assembleia da República, com mais de um milhar de propostas anuais de alteração à proposta do Governo; muitas centenas de páginas na comunicação social escrita e muitas centenas de horas na comunicação social por rádio e televisão) e cada vez menos atenção às Grandes Opções do Plano. A atenção prestada a este documento é tão pouca que, mesmo convencido de que a sua apresentação constitui uma obrigação constitucional, cheguei a admitir que tivesse caído em desuso – tendo verificado que não, que o Governo continua a apresentar anualmente as duas propostas de Lei, embora a das Grandes Opções do Plano reduzida a uma mera formalidade, para não dizer a mais uma mistificação (caminho que, de resto, o Governo em funções parece disposto a iniciar também no que se refere ao próprio Orçamento do Estado).
É conhecida a apetência dos portugueses pelo curto prazo e a forma como descuram o longo prazo e o planeamento. É conhecida a apetência de algumas forças políticas portuguesas, nomeadamente as que compõem a atual maioria, pelo curto prazo, pelo gastar no que dá mais votos, em consumo corrente, como se não houvesse amanhã. Compreendo menos bem que as forças políticas portuguesas que continuam a reivindicar-se do futuro, e da responsabilidade, tendam, não sei bem porquê, a deixar-se cair no mesmo engodo.
Não sei se este documento vai ser lido por muita ou por pouca gente mas estou a imaginar a estupefação dos que o leem, muitos ou poucos, com o que acabo de escrever. De onde chegou esta criatura? Terá acabado de aterrar, vindo de Marte? Não terei eu, o leitor, mais que fazer do que aturar esta conversa?
Permitam-me que procure explicar-me.
Portugal vive uma encruzilhada, tendo como pano de fundo, e como grande fator condicionante, o facto de, desde o início do milénio, a economia portuguesa ter praticamente deixado de crescer – não tendo nada para dar a ninguém, nomeadamente aos mais novos que teimam em continuar por cá. Não cresce por muitas razões mas se a política serve (ou servia...) para alguma coisa é precisamente para contrariar estas razões, tomando medidas que potenciem o crescimento económico. E não há crescimento sem investimento, público e privado, crescimento indutor de ganhos de produtividade (valor criado por habitante ou, mais rigorosamente, por habitante empregado). O consumo, nomeadamente o consumo público (já que falamos de Estado), servirá para muitas coisas, todas ou pelo menos a maior parte delas muito meritórias, mas não serve para induzir nem ganhos de produtividade nem crescimento económico.
Inimiga do futuro, e de quem se preocupa com ele, a maioria política que governa o País só pensa em consumo, desprezando o investimento. Apertada por uma situação financeira de grande dificuldade (o excesso de dívida pública), alega que não tem dinheiro para investimento – e tem-no ainda menos a partir do momento em que, para sustentar a mistificação do fim da austeridade, desvia para consumo o pouco dinheiro que se permite orçamentar para investimento, que não executa. No período de maior aperto financeiro, condicionado pela troika, “campeão da austeridade”, o Governo de Pedro Passos Coelho investiu sempre mais do que os Governos de António Costa...
A esperança de Portugal, em matéria de investimento, reside nos fundos disponibilizado pela União Europeia – majorados, na medida do estritamente exigido pelo UE, por fundos disponibilizados pelo Estado Português. Estou a falar dos 57,9 mil milhões de Euros de que o Governo dispõe até final de 2029: 12,8 mil milhões resultantes de atraso na execução do Portugal 2020, 15,3 mil milhões do PRR e 29,8 mil milhões provenientes do, por facilidade, normalmente designado Portugal 2030.
Como sempre ouvi ao CEN do PSD, pela voz do seu Presidente, Prof. Joaquim Miranda Sarmento, o que o Governo e a maioria deveriam fazer seria isto: tudo junto, é este o dinheiro de que dispomos para investimento, até final da década. São estas as nossas prioridades: propomo-nos gastar nisto e naquilo, tanto parta aqui, tanto para acolá. Concordam? Discordam? Querem sugerir alguma coisa de diferente em que, em alguma medida, talvez possamos acordar?
Fugindo, como tem fugido, a este procedimento (tratando isoladamente cada linha de financiamento, cada uma com a sua condicionalidade vinda de Bruxelas, agora o PRR, depois outra qualquer), o Governo trabalha mal. Nunca chega a definir um plano de ação suficientemente elaborado. E furta-se a qualquer exercício de transparência, e ainda mais a qualquer escrutínio democrático. Se lhe observarmos que, no PRR, o dinheiro está todo o ser aplicado no funcionamento dos serviços públicos, por vezes com muito pouco de investimento, responder-nos-á (como já respondeu...) que estamos a ser preconceituosos e precipitados, que o PRR é apenas uma parte dos fundos disponíveis para investimento público, que teremos de esperar pelo Portugal 2030. Quando chegar a vez do Portugal 2030, de novo “às pinguinhas”, o Governo dir-nos-á outra coisa qualquer (que Bruxelas não autoriza, que somos ignorantes), continuando a “levar a água ao seu moinho”, gastando sem critério e sem escrutínio, exceto apenas aquele que possamos vir a formular no fim, depois de tudo consumado.
Sendo as Grandes Opções do Plano um exercício de natureza diferente, de médio prazo, fui ver a Lei nº 75-C/2020, de 31 de dezembro, que aprova as Grandes Opções do Plano para o triénio 2021-2023, na esperança de encontrar algo de diferente. Tempo perdido: 89 páginas do Diário da República, em que apenas numa se encontra o dinheiro dividido pelos diferentes Ministérios, por ano, sem um mínimo de informação sobre como vai ser gasto, Euro a Euro, cêntimo a cêntimo, em cada linha de investimento. 89 páginas perdidas, sem um mínimo de transparência, com “uma conversa de chá e bolinhos” que, muito provavelmente, não será executada e, mesmo que o seja, ninguém nunca conseguirá saber como, com um mínimo de transparência.
Assim cumpre, ou melhor, não cumpre o Governo Português uma obrigação constitucional: aquela que pretende acautelar o nosso futuro, através do investimento público e da comparticipação do Estado na promoção, e no financiamento, do investimento privado.
Economista