Daniel Bessa: Trabalhar melhor, com mais transparência cumprir a Constituição da República Portuguesa

19 de abril de 2021
CEN portugal desenvolvimento Economia investimento

Recordo um passado, já relativamente distante (segunda metade dos anos setenta do século passado, depois do 25 de Abril de 1974), em que a sociedade portuguesa e, nesta, os mais diretamente envolvidos seja com as questões da economia, seja com a política, discutiam com igual empenho a Lei do Orçamento do Estado e a Lei das Grandes Opções do Plano.

A partir de então, e vão muito anos, praticamente quatro décadas, vejo prestar-se cada vez mais atenção ao Orçamento (debates infindáveis na Assembleia da República, com mais de um milhar de propostas anuais de alteração à proposta do Governo; muitas centenas de páginas na comunicação social escrita e muitas centenas de horas na comunicação social por rádio e televisão) e cada vez menos atenção às Grandes Opções do Plano. A atenção prestada a este documento é tão pouca que, mesmo convencido de que a sua apresentação constitui uma obrigação constitucional, cheguei a admitir que tivesse caído em desuso – tendo verificado que não, que o Governo continua a apresentar anualmente as duas propostas de Lei, embora a das Grandes Opções do Plano reduzida a uma mera formalidade, para não dizer a mais uma mistificação (caminho que, de resto, o Governo em funções parece disposto a iniciar também no que se refere ao próprio Orçamento do Estado).

É conhecida a apetência dos portugueses pelo curto prazo e a forma como descuram o longo prazo e o planeamento. É conhecida a apetência de algumas forças políticas portuguesas, nomeadamente as que compõem a atual maioria, pelo curto prazo, pelo gastar no que dá mais votos, em consumo corrente, como se não houvesse amanhã. Compreendo menos bem que as forças políticas portuguesas que continuam a reivindicar-se do futuro, e da responsabilidade, tendam, não sei bem porquê, a deixar-se cair no mesmo engodo.

Não sei se este documento vai ser lido por muita ou por pouca gente mas estou a imaginar a estupefação dos que o leem, muitos ou poucos, com o que acabo de escrever. De onde chegou esta criatura? Terá acabado de aterrar, vindo de Marte? Não terei eu, o leitor, mais que fazer do que aturar esta conversa?

Permitam-me que procure explicar-me.

Portugal vive uma encruzilhada, tendo como pano de fundo, e como grande fator condicionante, o facto de, desde o início do milénio, a economia portuguesa ter praticamente deixado de crescer – não tendo nada para dar a ninguém, nomeadamente aos mais novos que teimam em continuar por cá. Não cresce por muitas razões mas se a política serve (ou servia...) para alguma coisa é precisamente para contrariar estas razões, tomando medidas que potenciem o crescimento económico. E não há crescimento sem investimento, público e privado, crescimento indutor de ganhos de produtividade (valor criado por habitante ou, mais rigorosamente, por habitante empregado). O consumo, nomeadamente o consumo público (já que falamos de Estado), servirá para muitas coisas, todas ou pelo menos a maior parte delas muito meritórias, mas não serve para induzir nem ganhos de produtividade nem crescimento económico.

Inimiga do futuro, e de quem se preocupa com ele, a maioria política que governa o País só pensa em consumo, desprezando o investimento. Apertada por uma situação financeira de grande dificuldade (o excesso de dívida pública), alega que não tem dinheiro para investimento – e tem-no ainda menos a partir do momento em que, para sustentar a mistificação do fim da austeridade, desvia para consumo o pouco dinheiro que se permite orçamentar para investimento, que não executa. No período de maior aperto financeiro, condicionado pela troika, “campeão da austeridade”, o Governo de Pedro Passos Coelho investiu sempre mais do que os Governos de António Costa...

A esperança de Portugal, em matéria de investimento, reside nos fundos disponibilizado pela União Europeia – majorados, na medida do estritamente exigido pelo UE, por fundos disponibilizados pelo Estado Português. Estou a falar dos 57,9 mil milhões de Euros de que o Governo dispõe até final de 2029: 12,8 mil milhões resultantes de atraso na execução do Portugal 2020, 15,3 mil milhões do PRR e 29,8 mil milhões provenientes do, por facilidade, normalmente designado Portugal 2030.

Como sempre ouvi ao CEN do PSD, pela voz do seu Presidente, Prof. Joaquim Miranda Sarmento, o que o Governo e a maioria deveriam fazer seria isto: tudo junto, é este o dinheiro de que dispomos para investimento, até final da década. São estas as nossas prioridades: propomo-nos gastar nisto e naquilo, tanto parta aqui, tanto para acolá. Concordam? Discordam? Querem sugerir alguma coisa de diferente em que, em alguma medida, talvez possamos acordar?

Fugindo, como tem fugido, a este procedimento (tratando isoladamente cada linha de financiamento, cada uma com a sua condicionalidade vinda de Bruxelas, agora o PRR, depois outra qualquer), o Governo trabalha mal. Nunca chega a definir um plano de ação suficientemente elaborado. E furta-se a qualquer exercício de transparência, e ainda mais a qualquer escrutínio democrático. Se lhe observarmos que, no PRR, o dinheiro está todo o ser aplicado no funcionamento dos serviços públicos, por vezes com muito pouco de investimento, responder-nos-á (como já respondeu...) que estamos a ser preconceituosos e precipitados, que o PRR é apenas uma parte dos fundos disponíveis para investimento público, que teremos de esperar pelo Portugal 2030. Quando chegar a vez do Portugal 2030, de novo “às pinguinhas”, o Governo dir-nos-á outra coisa qualquer (que Bruxelas não autoriza, que somos ignorantes), continuando a “levar a água ao seu moinho”, gastando sem critério e sem escrutínio, exceto apenas aquele que possamos vir a formular no fim, depois de tudo consumado.

Sendo as Grandes Opções do Plano um exercício de natureza diferente, de médio prazo, fui ver a Lei nº 75-C/2020, de 31 de dezembro, que aprova as Grandes Opções do Plano para o triénio 2021-2023, na esperança de encontrar algo de diferente. Tempo perdido: 89 páginas do Diário da República, em que apenas numa se encontra o dinheiro dividido pelos diferentes Ministérios, por ano, sem um mínimo de informação sobre como vai ser gasto, Euro a Euro, cêntimo a cêntimo, em cada linha de investimento. 89 páginas perdidas, sem um mínimo de transparência, com “uma conversa de chá e bolinhos” que, muito provavelmente, não será executada e, mesmo que o seja, ninguém nunca conseguirá saber como, com um mínimo de transparência.

Assim cumpre, ou melhor, não cumpre o Governo Português uma obrigação constitucional: aquela que pretende acautelar o nosso futuro, através do investimento público e da comparticipação do Estado na promoção, e no financiamento, do investimento privado.

Economista